A divulgação do “caderno complementar” do Mapa da Violência 2012,
confeccionado pelo Instituto Sangari, com dados referentes aos
homicídios de mulheres, merece a atenção e análise. Os dados
condensados, relativos ao ano de 2010, confirmam as leituras
impressionistas, repetidas em conversas cotidianas, de que a violência
contra as mulheres no Brasil atinge níveis altíssimos.
Todos os dias somos confrontados com acontecimentos que corroboram
nossas leituras impressionistas. Nestes dias, aqui em Natal, estamos
chocados com um duplo homicídio, que ceifou a vida de mãe e filha em
Nova Parnamirim, torturadas antes de serem mortas.
Voltando aos dados do referido “caderno”, vale a pena destacar um
dado inicial: 91 mil mulheres foram assassinadas no Brasil nos últimos
trinta anos. E, no mesmo período, o crescimento da taxa de homicídios
femininos passou de 2,3 para cada cem mil mulheres, dado de 1980, para
4,4, em 2010.
Fato importante: as taxas crescem até 1996. Depois desse ano, começam
a ter um ligeiro decréscimo. É o impacto da Lei Maria da Penha. Uma boa
ação do Estado, que tem contribuído para salvar vidas. E salvar vidas é
o mais importante, não é?
Como as mulheres estão sendo mortas? Fazendo a comparação com os
tipos de homicídios masculinos, temos uma radiografia expressiva.
Apresentarei os números, farei os comentários posteriormente.
Comecemos com os meios utilizados para a consecução dos homicídios
masculinos e femininos. A arma de fogo é utilizada em 75,7% dos
homicídios masculinos, situação diferente dos homicídios femininos, nos
quais esse meio é utilizado em 53,9%. Objetos cortantes são utilizados
em 15,5% dos homicídios masculinos e em 26,0% dos homicídios masculinos.
Objeto contundente, em 5,3% dos homicídios masculinos contra 8,3% dos
homicídios femininos. Estrangulamento, em apenas 1% dos homicídios
masculinos contra 6,2% dos homicídios femininos.
Vamos ao local dos homicídios agora. Enquanto naqueles que vitimam
homens apenas 14,7% ocorrem nas residências ou habitações, em relação às
mulheres, esse percentual chega a impressionantes 40%.
Observações apressadas sobre os dados acima apontados:
1) Nos homicídios masculinos, os meios utilizados parecem indicar um
objetivo focado: eliminar o outro. Nos femininos, não se trata apenas da
eliminação do (a) outra, mas, antes de tudo, de atingir e desfigurar o
corpo de quem se deseja eliminar. Seriam homicídios mais passionais?
Acredito que essa leitura, muito recorrente na mídia e nas análises mais
apressadas, deixa de lado uma dimensão fundamental: os meios utilizados
nos homicídios femininos indicam uma intenção que vai além da morte
do(a) outra. Trata-se de, desfigurando ou vilipendiando o seu corpo,
negar a sua humanidade. Reduzi-la enquanto sujeito.
2) Se todo ato de violência física ancora-se em uma violência
simbólica que o possibilita enquanto antecipação da ação, os meios
utilizados nos homicídios femininos no Brasil parecem indicar uma
relação tão marcadamente instrumental com o corpo feminino (numa
gradação que vai do objeto a ser visto e tomado posse, como o nosso
cancioneiro vulgar não cansa de repetir, à possibilidade de sua
degradação, no momento da morte).
3) A casa não é um lugar seguro para as mulheres. “Lar, doce lar”.
Doce? Se 40% dos homicídios femininos ocorrem em residências, podemos
supor que os mesmos são cometidos por pessoas próximas (marido,
namorado, conhecido…). E olha que estamos nos referindo a um indicador
último e extremo de violência contra a mulher que é o assassinato. E os
atos que não redundam em mortes e que se perdem nos buracos negros da
subnotificação? É um elemento de realidade a reforçar a nossa ideia de
que os dados de violência agora apresentados pelo Instituto Sangari
expressam uma violência que funciona assim como uma espécie de gramática
das relações de gênero no nosso país: o corpo feminino não pertence à
mulher, nem mesmo na hora de sua morte. Já não o é naquele da concepção,
pois, a negação de direitos reprodutivos (como o aborto) expressa a
força social da negação do controle das mulheres sobre os seus próprios
corpos.
Bom. Vamos agora para os dados relativos à distribuição geográfica
dos homicídios femininos. Quando levamos em conta as informações
relativas à distribuição por unidades federativas, a situação do Rio
Grande do Norte está longe de ser a pior. Em 2010, ano-base da amostra
do Instituto Sangari, 62 mulheres foram assassinado no Estado. Isso
significa, em termos da medida padrão de mensuração dos homicídios, em
3,8 homicídios para cada 100 mil mulheres. É altíssimo, mas ainda é
menor que a média nacional (4,4) e o índice alcançado por dezenove
estados.
Quando focamos em Natal, aí o quadro é negativamente revertido. Com
20 assassinatos de mulheres em 2010, a capital do RN alcança a marca de
6,3 homicídios para cada 100 mil mulheres. Ou seja, percentualmente, na
capital que se quer vender como exemplo de qualidade de vida, mata-se o
dobro de mulheres do que o restante do estado. Esse quadro levou a
capital potiguar a ocupar o 11º lugar dentre as capitais nas quais mais
ocorrem homicídios femininos.
A situação em Natal é ruim, mas a de Mossoró é bem pior. Na “capital
do Oeste”, em 2010, foram assassinadas 14 mulheres, fazendo com que a
cidade alcançasse um índice de 10,4 homicídios para cada 100 mil
mulheres.
Ao somar o número bruto de homicídios femininos em Natal e Mossoró,
temos nada menos que 34 assassinatos. Ou seja, nas duas cidades matam-se
mais mulheres do que em todo o restante do Rio Grande do Norte.
Para se ter uma ideia do quão estarrecedor é o índice de homicídios
femininos em Mossoró, basta lembrarmos que o mesmo é maior do que aquele
alcançado pelo país no qual mais mulheres são assassinados em média (El
Salvador, com 10,3).
Um outro dado geral alarmante, apontado pelo “Caderno” com base em
informações ainda em processamento relativos ao ano de 2011, diz
respeito a um elemento que emerge quando levamos em conta todos os tipos
de violência que vitimaram mulheres. Refiro-me ao fato de que 51,6% das
vítimas já haviam sofrido agressões físicas anteriormente.
Uma outra informação relevante é aquela relacionada aos agressores.
Apenas 13,8% destes são desconhecidos. O restante divide-se entre
cônjuges, ex-conjuges, amigos e membros da família (pai e irmãos,
especialmente). Valendo destacar que cônjuges e amigos somados formam
40% dos agressores das mulheres no Brasil
O que podemos concluir? Que estamos vivendo um feminicídio no Brasil.
Essa violência contra as mulheres ocorre predominante em espaços nos
quais supostamente elas estariam mais seguras: suas residências.
Os dados constantes do documento merecem uma análise mais exaustiva. O
que coloquei acima deve ser lido apenas como um estímulo ao debate
sobre a violência de gênero no nosso país.
falariogrande.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário